quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Vany


Me lembro daquela casa cheia, todos na cozinha, conversas altas, gargalhadas, enquanto passava o Domingão do Faustão naquela velha televisão preto e branco.

Eu, uma criança pequena, curiosa, e senhora, já adulta, baixinha, gordinha, de personalidade forte. Me lembro do seu tom de voz agudo, bonito, bem feminino. Me lembro das suas gargalhadas.

Me lembro das histórias que me contava da sua juventude. Me lembro de ouvir os lugares que a senhora frequentava no Santa Cruz e na Vila Mariana antes do metrô (e na sua opinião, me lembro, os bairros nunca mais foram os mesmos depois da chegada dele.)

Me lembro das histórias da fábrica de chocolates onde a senhora trabalhava, quando subiu de setor, dos chocolates que sempre me trazia. A mim, aos vizinhos, a todos. Me lembro do seu coração de mãe, mesmo nunca tendo tido filhos, e me tratava como um filho seu. Tratava a mim, às meninas da vizinha, aos seus sobrinhos da vila Mariana, os meus irmãos, o seu irmão de criação surdo e mudo. E cuidava mesmo! Dava broncas, conselhos amorosos, puxões de orelha, falava mesmo, ou então, nos botava para cima, fazendo a gente rir mesmo quando a gente estava murcho. Me lembro do seu sorriso quase presente em todas as fotos que tirava. Me lembro do seu coração enorme, não hesitando em ajudar quem precisava, e quem a senhora amava. Me lembro da sua teimosia, e que teimosia!

Me lembro que a senhora estava em todas. E me levava para todas. Estava em todas também aqui em casa, no Natal, Ano Novo. E quando viajávamos para a praia? Não saia da água, assim como eu. Quando íamos para a igreja, do tempo em que eu a freqüentava direto. A senhora não tinha vergonha da sua fé. Cantarolava as músicas bem alto, com uma certa afinação, com tanata devoção, a fé realmente sempre te acompanhou.

Me lembro nos finais de tarde daquele cafezinho que, mesmo eu precisando ir embora, a senhora fazia questão que eu tomasse. Um café com leite e pão. Me fazia companhia. Eu também por muitas vezes te fiz companhia. Até, em certos momentos, mesmo tão inexperiente da vida, fui por acaso o ouvido que precisava para lhe escutar.

Me lembro dos seus problemas de saúde. Dos problemas causados pelo seu trabalho na fábrica. Me lembro do dia em que, já almejando a sua aposentadoria por tempo de serviço, uma supervisora acabou distanciando o seu sonho... e graças a isso, ao meu ver, sua vida nunca mais foi a mesma...

Me lembro da sua correria para se aposentar. Das ilusões com advogados, com as horas de espera, com as dores e as raivas que passou no INSS. Até que veio aquele dia... um médico maldito e antiético, que a fez ficar tão nervosa, mas tão nervosa e desesperançosa, que acabou abalando a sua mente...

Me lembro dos dias em que te via muda. Me lembro do tormento que era te ver muda. Me lembro do sofrimento que foi vê-la imóvel, depressiva. Me lembro da recuperação, do primeiro surto (causado por certas pessoas de quem a senhora acabou confiando demais).

Me lembro da sua recuperação, das minhas paranóias, do meu medo em não saber lidar com a sua situação, mesmo eu já adulto. Me lembro da sua felicidade, após quase 8 anos, conseguir finalmente a sua aposentadoria.

E principalmente, me lembro de seu último surto. Um surto tão grave, que também quase me fez surtar... a mim e principalmente à minha mãe, que passou a cuidar da senhora. Me lembro da dor que era te ver naquele estado, e da dor que foi de ter chegado ao ponto de ter que interná-la numa clínica. Me lembro do alivio que foi encontrar uma, e da certeza de que dessa vez a senhora conseguiria se recuperar da depressão...

E por fim, me lembro daquela noite, em que chegando do trabalho, recebi a noticia que menos esperava receber naquele dia, e que até hoje tento aceitar da forma como foi. Seu coração subitamente parara de funcionar. Sua mente, tão atormentada por alucinações e lembranças, teve um descanso eterno.

A senhora descansou.


Agora, me pergunto, por que é tão difícil lidar com perdas? Por que nós seres humanos nos acostumamos tanto com a vida, que em certos momentos, ela nos taca na cara sem dó nem piedade que além dela, existe a morte?

Hoje, sigo minha vida. Estou fazendo a minha faculdade, que como a senhora sabia, eu queria tanto fazer. Já sonhei como teriam sido as coisas se a senhora tivesse voltado daquela clínica. Sonhei com momentos antes da clínica. Sonhei com momentos no dia em que deixara a clínica para se juntar aos anjos... e derramei lágrimas... lágrimas de dor... uma dor tão forte, que lentamente, vai se cicatrizando, ainda que a marca do machucado, tenho certeza, ficará para sempre em mim.

Hoje faz um ano que partiu. Como estará? Onde estará? Não importa. Tenho certeza de que muito melhor do que eu, do que todo mundo neste mundo. Só peço pra continuar intercedendo por mim, pela nossa família, por todos que a amaram e até hoje não se esquecem do seu sorriso. Seu cãozinho está velho, triste, mas ainda resiste até o dia em que Deus quiser. Seu irmão de criação, surdo e mudo, agora mora sozinho na casa, que agora está silenciosa, ainda com a sua marca, ainda com a sua lembrança, mas fique tranqüila, que ele está aos cuidados da minha mãe, que também é irmã dele, e agora, se tornou a sua mãe.

Ainda sinto a sua falta. Ainda sentirei a sua falta. Todos nós sentiremos a sua falta. Sei que um dia todos nós vamos nos reencontrar. Até lá, fique com Deus, e obrigado por existir, seja em presença, seja através do seu exemplo...

E pode ter a certeza, que seu espaço no meu coração estará sempre reservado, com tamanho carinho que a senhora sempre me proporcionou, mesmo nos momentos em que sua mente não a acompanhava mais...

Fique em paz...

de seu sobrinho.

Danilo Moreira


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FOTO: Acervo pessoal

2 comentários:

Marcelo A. disse...

Belíssima homenagem, Danilo...

Dia desses, tava revendo na TV, aquele filme chamado "Lado a Lado", com a Susan Sarandon e a Julia Roberts. Numa das cenas finais, quando a mãe se despede do filho, ela diz que as pessoas que se vão, continuam vivendo no coração e na memória daqueles que a amam. Sim, amam, não amavam, porque o sentimento não termina com a morte. Hoje, lendo o seu texto pude ter certeza disso.

E tenho certeza absoluta que, onde quer que esteja, sua tia também sabe disso...

Abração e apareça!

[ rod ] ® disse...

às vezes penso que o coração da gente não foi feito para suportar perdas... foi adaptável para isto...

bela homenagem meu caro... e fica bem... abs e, por favor, vamos marcar uma saída... kd a gi?

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