São
Paulo, 2004. Centro Cultural São Paulo.
O
homem, parado na porta de vidro, esperava a abertura da biblioteca quando um
rapaz de 19 anos, usando boné, camiseta, bermuda e um All Star azul, vinha com pressa pois achava estar atrasado. Agitado, aproximou-se dele e
perguntou:
-
Amigo, por favor, que horas são?
O
homem ficou sério, e me mediu de cima a baixo.
-
Cê tá louco? Acha que eu sou trouxa? – respondeu ele, cismado, se afastando de
mim.
Não
entendi nada. Apenas queria saber quanto tempo faltava para abrir a biblioteca.
Eu não tinha celular naquela época e estava sem relógio. Insisti dizendo que só
queria saber as horas. Arrogante, mandou que eu ficasse longe dele. Depois é
que eu entendi que o rapaz achou que eu queria assaltá-lo, mesmo eu estando
visualmente “normal”. Aquilo me deixou impressionado. Eu sabia que usavam esse
golpe, mas nunca imaginei que um dia pensariam isso de mim.
***
São
Paulo, 2013. Avenida Paulista.
Hora
do almoço. Caminhava pela calçada movimentada usando uma camiseta do U2, rumo ao Centro Cultural São Paulo para matar as saudades, e também
fazer hora, já que tinha outro compromisso mais tarde.
Perto
de uma agência bancária, vi um jovem de terno e gravata me chamar com um
estranho sorriso. “Com esse sorriso, deve ser vendedor”, pensei. E o dispensei
com a mão. Ele apontou para mim, como se algo tivesse caído da minha mochila.
Ignorando-o, segui meus passos, mas conferi os zíperes. Fechados. Aquele cara
queria me levar na conversa. Ele continuou a me chamar, e eu, com fones de
ouvido, seguia normalmente sem alterar o meu ritmo. E então aquele rapaz afobado
passou a correr na minha direção, e ainda me chamava alto. No meu ouvido soavam
guitarras do Capital Inicial, e mesmo assim conseguia ouvir os seus gritos:
“Ei! Ei! Rapaz! Vem cá!”. Fiquei irritado mas não acelerei. O que ele queria
com aquele escândalo todo, afinal? Achei estranho demais. Numa cidade violenta
como São Paulo pode ser automático sentir esse receio, pois o “bote” pode vir
de quem menos se espera. Me lembrei de uma antiga reportagem televisiva onde um
grupo de senhores de termo e gravata batiam carteiras no Centro, em pleno
horário de almoço. Comecei a pensar se esse não seria o interesse dele.
O
rapaz então me alcançou, tocou no meu ombro, ainda me chamando alto. Parecia
ser muito importante. “Ou esse cara quer me vender alguma coisa e ficou puto
porque o ignorei e que me empurrar algum produto a todo custo, ou realmente
quer me dar o golpe.”, pensei. Desisti de ignorá-lo, e apreensivo, com o punho
fechado, parei para lhe dar atenção. Ele tirou um dos fones que usava e pediu
para por no meu ouvido.
-
Pra quê? – perguntei.
-
Vai, escuta! – disse ele, empolgado, querendo me mostrar alguma coisa.
Coloquei
o seu fone olhando para os lados. No fone, uma música do U2, que eu sequer
consegui identificar por conta da minha apreensão. Poderia ser o pretexto para
me distrair e outro comparsa, quem sabe, iria naquele momento arrancar a
mochila das minhas costas. Já tentaram me levar na conversa, ali perto, uma
vez.
-
Muito legal essa camiseta do U2! Eu to louco pra comprar essa e não consigo
achar de jeito nenhum! Comprou onde? – perguntou, ofegante, mas ainda sorridente.
-
Eu comprei na Galeria do Rock na época que eles vieram, em 2011.
-
Sério? Que legal. Eu estava lá. Mas eu queria muito comprar essa camiseta e não
consegui encontrar mesmo.
-
Compra na Galeria do Rock. Na época paguei 23 reais, se não me engano. Agora
deve estar mais barata.
- Beleza. – e estendeu a mão. – Muito obrigado,
mesmo!
Respondi
“de nada” e enquanto apertava rapidamente a sua mão. Nos despedimos
cordialmente. Não sei se ele trabalhava naquele banco, mas tinha voltado para
lá. Fui para o CCSP pensando no que ele realmente queria. Sim, pensei se ele
era gay e estava usando a camiseta como pretexto para puxar conversa. Mas não aparentava.
Fui
embora pensando qual era a dele, mas impressionado com o meu estado de
apreensão. Naquela ocasião, meio dia, avenida movimentada, não é comum, pelo
menos aqui, alguém fazer o que ele fez. E eu, fechado em uma espécie de
armadura, tratei-o de forma tão desconfiada e seca, que me recordei daquele
homem em 2004, porém, importante destacar, não tão arrogante, mas igualmente
cismado.
Fico
pensando no rumo que a sociedade está tomando por conta das suas mazelas. Mal
se pode olhar para o próximo sem ter o mínimo de desconfiança, ainda mais se
ele se encaixa nos estereótipos que essa mesma sociedade denominou para ser
considerado um sujeito perigoso. Vizinhos olham vizinhos com desconfiança e
hostilidade. Não se deixa os filhos nas ruas com medo da violência. Caminha-se
depressa, sem olhar muito para os lados, ou olhando para todos os cantos. Olhos
se sobressaltam se alguém mais agitado entra nos coletivos. Mãos suam e
corações disparam se, na calada da noite, os ouvidos detectarem passos atrás de
si. Mentes aos poucos adoecem nas paranoias. Parecem, mesmo que
inconscientemente, se fecharem em uma armadura. O pior de tudo é que diante do
quadro de segurança em São
Paulo e em outras cidades do país, vejo que em boa parte dos
casos, essa armadura é ainda a melhor alternativa, por enquanto...
Quase
dez anos e alguns assaltos depois, a vida me tornou parecido com aquele homem receoso
a quem tanto repudiei. Sinceramente, sinto pena e vergonha dos dois. E uma
revolta por todos terem deixado as coisas chegarem a esse patamar que pode
beirar o animalesco.
Humanos
se protegendo de humanos na mesma intensidade de presas e predadores. E acho
que a coisa só tende a piorar.
Danilo Moreira
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FOTO: http://mulheresqueamamerrado.blogspot.com.br/2012/02/qual-o-medo-que-te-persegue.html
6 comentários:
O pior são as reações sobre às paqueras!
Hoje a impressão que tenho é de um certo "estrupo com olhos".
Já que muitas pessoas demostraram ter pavor quando alguém está olhando!
Ótimo texto Danilo, parabéns!
Rob Naveya
Danilo, meu caro... li seu texto e imaginei direitinho vc, na Paulista, evitando o sujeito. eu já te conheci assim, dessa forma, desconfiado da própria sombra, mas compreendo perfeitamente a sua situação.
Assim como vc, tbm tenho pena de nós, seres humanos, intrigados com nós mesmos. Infelizmente, ou nos protegemos de todos, ou ficamos altamente vulneráveis a qualquer tipo de ameaça.
Bom texto.
Abs da sua eterna leitora e fã, Bruna Sousa ;D
Tento não me incomodar com as pessoas, com seus olhares e comentários, mas é bem difícil, a cada dia me surpreendo mais com o rumo das coisas.
Infelizmente, Danilo, esse é o cenário no qual todos nós estamos condenados a atuar. Desconfiando de tudo e de todos. É uma triste realidade. Sou super displicente, e por conta disso já me assaltaram algumas vezes. Fiquei um pouco mais atenta depois disso, mas nossos sentidos às vezes nos enganam e muitas vezes, desconfiamos de quem não merece. Abs.
Embora tenhamos os nossos motivos sociais para nos comportarmos dessa maneira, confesso que gosto muito de estar em lugares [tão complicados como São Paulo] e perceber que ainda há gente "disponível"... e olha que esses lugares existem!
Infelizmente o mundo de hoje tá assim...e cada vez mais piorando. Muito bom seu relato.
http://coisas-jujuba.blogspot.com.br/2013/04/la-vou-eu-polemizar-de-novo.html
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