segunda-feira, 1 de abril de 2013

Armaduras na selva de pedra



São Paulo, 2004. Centro Cultural São Paulo.

O homem, parado na porta de vidro, esperava a abertura da biblioteca quando um rapaz de 19 anos, usando boné, camiseta, bermuda e um All Star azul, vinha com pressa pois achava estar atrasado. Agitado, aproximou-se dele e perguntou: 

- Amigo, por favor, que horas são?

O homem ficou sério, e me mediu de cima a baixo. 

- Cê tá louco? Acha que eu sou trouxa? – respondeu ele, cismado, se afastando de mim. 

Não entendi nada. Apenas queria saber quanto tempo faltava para abrir a biblioteca. Eu não tinha celular naquela época e estava sem relógio. Insisti dizendo que só queria saber as horas. Arrogante, mandou que eu ficasse longe dele. Depois é que eu entendi que o rapaz achou que eu queria assaltá-lo, mesmo eu estando visualmente “normal”. Aquilo me deixou impressionado. Eu sabia que usavam esse golpe, mas nunca imaginei que um dia pensariam isso de mim.

 ***
São Paulo, 2013. Avenida Paulista.

Hora do almoço. Caminhava pela calçada movimentada usando uma camiseta do U2, rumo ao Centro Cultural São Paulo para matar as saudades, e também fazer hora, já que tinha outro compromisso mais tarde. 

Perto de uma agência bancária, vi um jovem de terno e gravata me chamar com um estranho sorriso. “Com esse sorriso, deve ser vendedor”, pensei. E o dispensei com a mão. Ele apontou para mim, como se algo tivesse caído da minha mochila. Ignorando-o, segui meus passos, mas conferi os zíperes. Fechados. Aquele cara queria me levar na conversa. Ele continuou a me chamar, e eu, com fones de ouvido, seguia normalmente sem alterar o meu ritmo. E então aquele rapaz afobado passou a correr na minha direção, e ainda me chamava alto. No meu ouvido soavam guitarras do Capital Inicial, e mesmo assim conseguia ouvir os seus gritos: “Ei! Ei! Rapaz! Vem cá!”. Fiquei irritado mas não acelerei. O que ele queria com aquele escândalo todo, afinal? Achei estranho demais. Numa cidade violenta como São Paulo pode ser automático sentir esse receio, pois o “bote” pode vir de quem menos se espera. Me lembrei de uma antiga reportagem televisiva onde um grupo de senhores de termo e gravata batiam carteiras no Centro, em pleno horário de almoço. Comecei a pensar se esse não seria o interesse dele. 

O rapaz então me alcançou, tocou no meu ombro, ainda me chamando alto. Parecia ser muito importante. “Ou esse cara quer me vender alguma coisa e ficou puto porque o ignorei e que me empurrar algum produto a todo custo, ou realmente quer me dar o golpe.”, pensei. Desisti de ignorá-lo, e apreensivo, com o punho fechado, parei para lhe dar atenção. Ele tirou um dos fones que usava e pediu para por no meu ouvido.

- Pra quê? – perguntei.

- Vai, escuta! – disse ele, empolgado, querendo me mostrar alguma coisa.

Coloquei o seu fone olhando para os lados. No fone, uma música do U2, que eu sequer consegui identificar por conta da minha apreensão. Poderia ser o pretexto para me distrair e outro comparsa, quem sabe, iria naquele momento arrancar a mochila das minhas costas. Já tentaram me levar na conversa, ali perto, uma vez. 

- Muito legal essa camiseta do U2! Eu to louco pra comprar essa e não consigo achar de jeito nenhum! Comprou onde? – perguntou, ofegante, mas ainda sorridente.

- Eu comprei na Galeria do Rock na época que eles vieram, em 2011.

- Sério? Que legal. Eu estava lá. Mas eu queria muito comprar essa camiseta e não consegui encontrar mesmo.

- Compra na Galeria do Rock. Na época paguei 23 reais, se não me engano. Agora deve estar mais barata.

 - Beleza. – e estendeu a mão. – Muito obrigado, mesmo!

Respondi “de nada” e enquanto apertava rapidamente a sua mão. Nos despedimos cordialmente. Não sei se ele trabalhava naquele banco, mas tinha voltado para lá. Fui para o CCSP pensando no que ele realmente queria. Sim, pensei se ele era gay e estava usando a camiseta como pretexto para puxar conversa. Mas não aparentava. 

Fui embora pensando qual era a dele, mas impressionado com o meu estado de apreensão. Naquela ocasião, meio dia, avenida movimentada, não é comum, pelo menos aqui, alguém fazer o que ele fez. E eu, fechado em uma espécie de armadura, tratei-o de forma tão desconfiada e seca, que me recordei daquele homem em 2004, porém, importante destacar, não tão arrogante, mas igualmente cismado. 

Fico pensando no rumo que a sociedade está tomando por conta das suas mazelas. Mal se pode olhar para o próximo sem ter o mínimo de desconfiança, ainda mais se ele se encaixa nos estereótipos que essa mesma sociedade denominou para ser considerado um sujeito perigoso. Vizinhos olham vizinhos com desconfiança e hostilidade. Não se deixa os filhos nas ruas com medo da violência. Caminha-se depressa, sem olhar muito para os lados, ou olhando para todos os cantos. Olhos se sobressaltam se alguém mais agitado entra nos coletivos. Mãos suam e corações disparam se, na calada da noite, os ouvidos detectarem passos atrás de si. Mentes aos poucos adoecem nas paranoias. Parecem, mesmo que inconscientemente, se fecharem em uma armadura. O pior de tudo é que diante do quadro de segurança em São Paulo e em outras cidades do país, vejo que em boa parte dos casos, essa armadura é ainda a melhor alternativa, por enquanto...

Quase dez anos e alguns assaltos depois, a vida me tornou parecido com aquele homem receoso a quem tanto repudiei. Sinceramente, sinto pena e vergonha dos dois. E uma revolta por todos terem deixado as coisas chegarem a esse patamar que pode beirar o animalesco. 

Humanos se protegendo de humanos na mesma intensidade de presas e predadores. E acho que a coisa só tende a piorar.

Danilo Moreira

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FOTO: http://mulheresqueamamerrado.blogspot.com.br/2012/02/qual-o-medo-que-te-persegue.html 

6 comentários:

Thainá Naveya disse...

O pior são as reações sobre às paqueras!
Hoje a impressão que tenho é de um certo "estrupo com olhos".
Já que muitas pessoas demostraram ter pavor quando alguém está olhando!
Ótimo texto Danilo, parabéns!

Rob Naveya

B disse...

Danilo, meu caro... li seu texto e imaginei direitinho vc, na Paulista, evitando o sujeito. eu já te conheci assim, dessa forma, desconfiado da própria sombra, mas compreendo perfeitamente a sua situação.
Assim como vc, tbm tenho pena de nós, seres humanos, intrigados com nós mesmos. Infelizmente, ou nos protegemos de todos, ou ficamos altamente vulneráveis a qualquer tipo de ameaça.

Bom texto.

Abs da sua eterna leitora e fã, Bruna Sousa ;D

Marília Tasso disse...

Tento não me incomodar com as pessoas, com seus olhares e comentários, mas é bem difícil, a cada dia me surpreendo mais com o rumo das coisas.

Suely Melo disse...

Infelizmente, Danilo, esse é o cenário no qual todos nós estamos condenados a atuar. Desconfiando de tudo e de todos. É uma triste realidade. Sou super displicente, e por conta disso já me assaltaram algumas vezes. Fiquei um pouco mais atenta depois disso, mas nossos sentidos às vezes nos enganam e muitas vezes, desconfiamos de quem não merece. Abs.

Tati disse...

Embora tenhamos os nossos motivos sociais para nos comportarmos dessa maneira, confesso que gosto muito de estar em lugares [tão complicados como São Paulo] e perceber que ainda há gente "disponível"... e olha que esses lugares existem!

Central disse...

Infelizmente o mundo de hoje tá assim...e cada vez mais piorando. Muito bom seu relato.

http://coisas-jujuba.blogspot.com.br/2013/04/la-vou-eu-polemizar-de-novo.html

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