Era noite e Miguel, de nove anos,
estava sozinho em casa. Viu que não tinha mais nada para fazer, decidiu ligar a
televisão. Pegou o controle, passou por alguns canais e entortou os lábios.
Nada de interessante até então.
Fez uma última tentativa e caiu em uma
cena de novela. Nela, duas mulheres se beijavam. O menino arregalou os olhos.
“Menina com menina? Isso não tá errado?”, pensou. Observou o casal. Eram duas
atrizes que ele já tinha visto antes. Ele sabia o que era novela, sabia que ali
era apenas uma encenação. Mas mesmo assim, sentiu estranheza. Em seguida, riu.
Não tinha nada demais. Chegava a ser engraçada. “Mulher já se cumprimenta
beijando mesmo”.
Neste momento, brotaram dedos em seu
colo, arrancando o controle de si e mirando para a televisão como se fosse uma
arma. Ela foi desligada.
– Já para seu quarto! Já falei pra não
assistir novela que não é coisa pra sua idade!
– Mas, mãe!
– Sem conversa! Se não for por bem vai
por mal!
Miguel baixou a cabeça e chateado, trancou-se
no seu quarto. No cômodo ao lado, ouvia-se a conversa dos pais. –
– Amor, não precisava gritar com ele
daquela forma. Era só desligar a televisão.
– Não quero saber! Novela não tem nada
que preste, só traição, violência, mentiras, sexo, imoralidades... E agora
entraram nessa moda de beijo gay e lésbico. É isso que querem ensinar pras
crianças? Novela devia ser proibida para menores!
O menino encolheu-se nos joelhos e
chorou até dormir.
No dia seguinte, seus olhos mal se
abriam. Tinha que acordar cedo para ir ao colégio. Sentou-se à mesa, pegou seu
chocolate quente e o bebeu com olhar concentrado. Sua mãe observava a televisão
ao lado:
“Grupo de jovens ateiam fogo a mendigo
no Centro da cidade e filmam toda a ação! Confira o vídeo!”
Curioso, o pai aumentou o volume do
aparelho. Ao ouvir os berros do mendigo sendo incendiados e as gargalhadas ao
fundo do vídeo, Miguel sentiu seu estomago se embrulhar. Virou a cabeça para a
sua caneca de chocolate, tentando fugir daquela imagem, mas a televisão estava
tão alta que o som invadia seus ouvidos. Decidiu falar com o pai para
distrair-se da cena.
– Pai! O meu amigo da escola me convidou
pra assistir “Os Loucos” na casa dele depois da aula? Posso? Diz que sim!
– Os Loucos? Aquele filme com aqueles
adolescentes que aprontam de tudo? De jeito nenhum. Não tinham outro filme
melhor pra assistir não?
– Mas pai!
– Seu pai está certo! Tem tantos filmes
interessantes e educativos pra assistir. Já viram aquele novo da Disney, com
aqueles bichinhos tão fofos? Aquilo é coisa pra tua idade!
Miguel baixou a cabeça. Levantou-se da
mesa e foi arrumar-se para o colégio. Enquanto penteava os cabelos, ouviu os
vidros da sua janela se estremecerem com o som alto de um carro que passava na
rua. A frase, repetida várias vezes, era uma vez masculina pedindo para uma
mulher tacar sua genital com força na cara dele. Ele já sabia o que aquilo
queria dizer. Na verdade, ele ouvia mais detalhes da cena todos os fins de
semana, quando o vizinho estava em casa e ligava o radio no último volume, ou
quando ia nas festas dos primos e as tias colocavam aquelas músicas. Lembrou um
dia, inclusive, quando era menor e quis imitar o jeito que um tio dançava.
Todos riram, inclusive seus pais.
Entrou no carro do pai em silêncio. Ao
ver a tristeza do filho, o homem apenas alisou sua cabeça. Em seguida, deu a
partida. Miguel abriu um jogo em seu celular para se distrair. A todo momento
era desconcentrado pelos palavrões que seu pai soltava ao xingar os motoqueiros
ou motoristas que passavam por ele ou quando parava em algum semáforo.
No intervalo da escola, encontrou-se com
alguns amigos. Um deles tinha nas mãos uma revista pornô, que pegara escondido
dos pais. O menino olhou, impressionado com aquela modelo, que fazia caras e
poses provocativas. Ao ouvir a voz do inspetor, os meninos disfarçaram. Passaram
a fazer piadas de duplo sentido e a comentar das professoras mais bonitas.
À noite, família em casa, a mãe o chamou
para jantar. Na televisão, sintonizada em um canal pago, um filme exibia um
tira, que após perder a família num atentado criminoso, decidiu buscar
vingança. Na sala, com um prato de comida na mão, o pai e mais um amigo não
tiravam os olhos da cena. Em uma das lutas, o vingador estoura os olhos do
inimigo apenas com os dedos. A mãe leva seu prato para a sala e chama Miguel
para ir junto. Com o volume alto, potencializado pelas caixas de som, o menino
observa corpos e mais corpos inimigos sendo abertos em sangue.
– Cara, você sabe que não sou de
palpitar, mas esse filme não é muito violento pro seu filho, não?
– Que nada! É um clássico! A gente não
assistiu quando era pequeno e matamos alguém? Meu filho é macho! Aguenta
assistir numa boa!
E todos riram. Miguel, ainda mau
humorado (ele queria ver Os Loucos, que os amigos já tinham assistido e
encheram sua cabeça com elogios ao filme), levantou-se do sofá e disse que ia
dormir.
Encostou
a cabeça junto ao travesseiro e logo pegou no sono. Mas não durou muito tempo.
Acordou com barulhos de tiros. Colocou o travesseiro por cima da cabeça. Ouviu
berros de uma mulher desesperada, berrando “Meu filho! Meu filho”!
No dia seguinte, enquanto tomava café,
ouviu seu pai comentar que mataram um conhecido deles. A mãe disse que
provavelmente ele estava envolvido com drogas. O pai achava que era assalto. A
mãe disse que ele era inocente demais. O pai respondeu que ela era insensível
demais. Os dois discutiram e em segundos passaram a se ofender com palavrões.
Miguel tomava seu chocolate quente fingindo que não era com ele. Decidiu ir
para a sala. Na televisão, o telejornal mostrava uma chacina em um bairro da
periferia, com fotos dos corpos dos jovens ensacados e amontoados numa calçada.
Pegou o controle e mudou de canal, desta vez da TV aberta. “Não perca! Os
Loucos hoje, na sessão das 11, após a novela Estanho Mimo”, dizia a propaganda.
Miguel sorriu. Seus pais certamente já estariam dormindo nesse horário.
Finalmente conseguiria assistir o filme. A TV era a única alternativa, já que
seu tablet estava bloqueado, assim como os notebooks dos pais.
Quando chegou a meia noite, abriu a
porta do quarto, pegou o controle da TV e ligou bem baixo para assistir. Os
adolescentes atrapalhados faziam de tudo para transar com duas garotas, e
apenas se metiam em confusões. Nesse momento, viu uma sombra tampar a
televisão. Era sua mãe, que tinha se levantado para pegar um copo d’água.
– O que foi que eu falei de assistir a
essa porcaria? Por que me desobedeceu! Está de castigo, sem TV por duas
semanas.
– Mas mããe!
– Não quero choro! Já falei que você
precisa assistir a coisas educativas. Essas porcarias só tem sexo, violência e
drogas. Vai dormir agora se não quiser que eu te leve à força!
Miguel arremessou o controle no sofá e
saiu chorando para o quarto. Achava o filme apenas engraçado, mas tinha
situações que ele já havia presenciado. Para ele, não era nada demais.
“Gente hipócrita” pensou, minutos antes
de pegar no sono, quando suas lágrimas já começavam a secar.
Finalmente ele tinha entendido aquela
palavra que a professora vivia repetindo no colégio.
Danilo Moreira
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Foto: Google